Ice Wine - O vinho que veio do gelo
Emília Freire10 de Março - 2011
O ice wine é considerado uma obra-prima da vitivinicultura. Um néctar cujo rendimento é tão baixo que uma videira chega a produzir apenas uma garrafa. Por isso, o seu sabor é tão recheado de aromas e, muitas vezes, é bebido como sobremesa ele próprio. Também por isso, é o vinho mais caro do mundo.
Diz-se que foi descoberto por acaso na Francónia, Alemanha, no final do século XVIII, mas só em meados do século XX os viticultores alemães começaram a produzir eiswein de forma intencional e com bases consistentes. Chegou ao Canadá no final dos anos 70 e a sua produção cresceu significativamente a partir dos anos 90, de tal forma que hoje é o maior produtor de icewine (escrito à maneira canadiana) e este vinho de sobremesa se tornou num ícone do país.
Cerca de 75% da produção canadiana de ice wine provém do Ontário e a restante da Columbia Britânica, embora a Nova Escócia e o Quebec também produzam pequenas quantidades. A Alemanha segue de perto o líder e Áustria, Austrália, Croácia, República Checa, França, Hong Kong, Hungria, Israel, Itália, Luxemburgo, Nova Zelândia, Eslováquia, Eslovénia, Suécia e Estados Unidos, são igualmente produtores, mas em quantidades muito pouco significativas.
Em 2009, no Ontário e Columbia Britânica colheram-se pouco mais de 1.900 toneladas de uva, produzindo cerca de 300 mil litros de ice wine, segundo os dados da Vintners Quality Alliance Ontario e do British Columbia Wine Institute. Bem longe do recorde de 2006 em que a colheita ultrapassou as 7.700 toneladas e rendeu 1.330.000 litros de néctar.
Na Alemanha, os últimos dados do Deutsches Weininstitut (DWI - instituto alemão do vinho) são de 2008 e apontam para uma produção de eiswein de 1.139.000 litros.
A produção do ‘vinho do gelo’ está claramente definida e regulamentada já este tipo de vinho faz parte da categoria de qualidade Prädikatswein na classificação do vinho alemão, e o icewine no Canadá deve seguir o protocolo Vintners Quality Alliance (VQA) e ser rotulado como tal. (Ver caixa)
Globalmente, o ice wine tem de ser produzido a partir de uvas que foram deixadas na videira muito para além da época normal, congelando devido às baixas temperaturas que se fazem sentir no Inverno nessas regiões. Os açúcares e outros sólidos dissolvidos não congelam, mas a água sim, permitindo um mosto mais concentrado já que é prensado a partir das uvas ainda congeladas. Os cristais de água ficam na prensa resultando numa menor quantidade de vinho mas mais concentrado, muito doce e com elevada acidez. No ice wine o congelamento acontece assim antes da fermentação e não depois.
As uvas para este vinho não devem estar afectadas pela Botrytis cinerea ou podridão nobre – como é o caso das uvas com que se fazem outros vinhos de sobremesa, como o Sauternes ou o Tokay –, devendo estar o mais sãs possível. Esta condição garante o fresco e concentrado sabor a fruta e os vinhos têm geralmente uma acidez relativamente vigorosa. É comum estarem presentes notas de damasco, pêssego, manga, melão e outras frutas doces.
A vindima do ice wine é feita normalmente em Dezembro e até Janeiro (mas não pode iniciar-se antes de 15 de Novembro) colhendo-se manualmente as uvas congeladas e que deverão ser prensadas num processo contínuo sempre a temperaturas de -8° Celsius ou menores. Por isso, a vindima é feita muitas vezes durante a noite para garantir a temperatura necessária, que anda normalmente entre os -10° e os -13° Celsius para se conseguir o açúcar (ver Quadro) e sabor ideais.
As uvas, mosto e vinho não podem ser refrigerados artificialmente em nenhuma fase do processo, excepto no tanque de refrigeração durante a fermentação e/ou a estabilização a frio antes do engarrafamento.
Do anonimato ao estrelato
A adega Inniskillin em Niagara-on-the-Lake, Ontário, foi quem primeiro lançou o ice wine no Canadá, de forma intencional e comercial, em 1984 sob a direcção do austríaco Karl Kaiser. Mas o primeiro ‘vinho do gelo’ canadiano foi produzido no Vale Okanagan, na Columbia Britânica, pelo imigrante alemão Walter Hainle em 1972 (ou 1974). Este ice wine foi o resultado de um rápido e inesperado frio que congelou as uvas na videira e rendeu apenas 40 litros de vinho, que Hainle originalmente não tinha a intenção de vender, mas acabou por fazê-lo em 1978.
Depois dessa experiência, Karl Kaiser e o seu vizinho alemão Ewald Reif, bem como com duas adegas vinícolas austríacas localizadas noutra parte do Ontário, a Hillebrand e Pelee Islands, decidiram todas deixar as uvas nas videiras a fim de tentar produzir ice wine. A Inniskillin e Reif perderam a colheita inteira, devorada por pássaros esfomeados, mas a Hillebrand e a Pelee Island conseguiram colher uma quantidade minúscula de uvas congeladas. No ano seguinte, 1984, Kaiser usou redes para proteger a sua vinha e conseguiu finalmente produzir ice wine Inniskillin pela primeira vez. Este vinho foi feito a partir de uvas Vidal e, curiosamente, foi rotulado de "Eiswein".
A partir daí a comercialização entrou em velocidade de cruzeiro e o ‘vinho do gelo’ ganhou rapidamente popularidade entre consumidores e críticos de vinho canadianos levando assim muitos mais vitivinicultores do país a entrar nesta produção, aproveitando os rigorosos Invernos das suas regiões. No Ontário, a Península de Niagara tem constantemente temperaturas de congelação no Inverno, pelo que se tornou na maior produtora de ice wine no mundo e, em termos de adegas, a Pillitteri Estates surgiu na década de 2000 como o maior produtor mundial de ice wine.
Em termos internacionais, o grande lançamento do icewine canadiano teve lugar em 1991, quando o Vidal de 1989 da Inniskillin ganhou o “Grand Prix d'Honneur”, na Vinexpo. Curiosamente este vinho foi ‘importado’ ilegalmente para a União Europeia uma vez que só depois de 2001 foi permitida a entrada do ice wine do Canadá na UE, uma vez que não cumpria as práticas "tradicionais" de vinificação.
Os viticultores canadianos começaram também a cultivar várias variedades europeias, como a Riesling alemã, entre outras. A Riesling é considerada a variedade mais nobre pelos produtores alemães mas a Vidal é muito popular na Columbia Britânica e no Ontário também a Cabernet Franc. Mas os produtores têm vindo a experimentar outras variedades de brancos, como Seyval Blanc, Chardonnay, Kerner, Gewurztraminer, Chenin Blanc, Pinot Blanc e Ehrenfelser, ou tintas, como Merlot, Pinot Noir e Cabernet Sauvignon.
Devido ao baixo rendimento o ‘vinho do gelo’ é comercializado principalmente em meias garrafas (375ml) ou mesmo mais pequenas (200ml), com o seu preço médio a rondar hoje os 50 dólares canadianos, mas indo habitualmente muito além disso. Em Novembro de 2006, a Royal DeMaria lançou cinco caixas de icewine Chardonnay com o preço da meia garrafa, fixado em 30.000 dólares canadianos, tornando-se no vinho mais caro do mundo. De acordo com o site da Royal DeMaria, o preço está agora em 250.000 dólares canadianos e, como já só há 18 garrafas, com a esperada valorização a última disponível poderá atingir os 500.000 dólares canadianos...
Uma realidade diferente
No berço do eiswein, o risco de produzir este néctar tem-se revelado elevado devido à probabilidade de não haver temperaturas necessárias à congelação da uva. Muitos viticultores alemães afirmam que as alterações climáticas estão a provocar Invernos mais quentes e instáveis.
As apostas são altas quando os viticultores arriscam neste jogo com a mãe natureza e deixam as uvas na videira à espera que as temperaturas cheguem aos -7°C. Um jogo que pode ir até Janeiro, ou mesmo Fevereiro em casos raros. "Para os viticultores, este é um risco de tudo ou nada", explica Ernst Büscher do Deutsches Weininstitut, num documento daquela entidade sedeada em Mainz. É que este “jogo envolve o risco de uma perda total das uvas, como foi o caso em 2006, quando praticamente nenhum eiswein pôde ser produzido”, salienta.
Em média, apenas cerca de 5 a 10% da cultura original realmente acaba como eiswein. O resto das uvas é colhido selectivamente ou sucumbe às condições meteorológicas. De acordo com o mesmo documento, o rendimento é de apenas três a cinco hectolitros por hectare, pelo que o volume global de produção de eiswein na Alemanha se situa entre 0,5 e um milhão de litros, ou seja 0,1% do rendimento anual.
Mesmo assim muitos apostam, mas “o eiswein não acontece por acidente”, frisa Ernst Bücher, pelo que os viticultores que o querem produzir têm de planear tudo muito bem. “É necessária uma orientação rigorosa para a qualidade através da manutenção durante o crescimento. Isso inclui podas rigorosas na Primavera para reduzir os rendimentos, e uma "colheita verde" selectiva antes da vindima principal, durante o qual as uvas verdes e pouco saudáveis são retiradas. Só então as uvas sãs podem permanecer na videira tempo suficiente para oferecer perspectivas de um eiswein de alta qualidade", salienta o responsável.
Quando as uvas estão maduras, as parcelas dedicadas à produção de eiswein são parcialmente desfolhadas e envoltas em plástico (respirável) ou redes para proteger as uvas de aves com fome. Estes dispositivos foram introduzidos nos anos 60 e, sem eles, seria impossível para as uvas para permanecer na videira, até Dezembro ou até Janeiro, sendo também usados no Canadá.
Segundo o DIW, é produzido como uma raridade e incita os coleccionadores a entrarem em acção, já que tem o seu preço, mas as poucas garrafas que são produzidas esgotam-se, normalmente com rapidez.
Regras bem apertadas
Para além das limitações referidas no texto, o icewine canadiano tem também de cumprir as seguintes regras:
- ter um Brix mínimo de 32 graus após a prensagem, quando medido no tanque de fermentação e o vinho ter um Brix de 35 graus ou mais (claramente acima do exigido na Alemanha que se situa entre 26 e 30 graus, dependendo da região);
- ter um açúcar residual de 125g/litro;
- o álcool deve provir exclusivamente dos açúcares naturais das uvas (e na Alemanha não pode ser inferior a 44g/l mas chega a ter 100g/l).
As regras alemãs impõem que o eiswein só se possa produzir nove em cada dez anos.
No Canadá, antes da colheita, o produtor tem ainda de verificar e especificar por escrito o seguinte:
a) as temperaturas de cada colheita individual,
b) a área cultivada e a tonelagem de cada dada cultura;
c) o nível medido de Brix de cada mosto;
d) a data e hora da colheita e
e) a capacidade de prensagem de ice wine.
Noutros países, onde não existem regras ou são claramente menos restritivas, alguns vinicultores usam a crio-extracção (ou seja, o congelamento mecânico) para simular o efeito da congelação da uva e, normalmente, não deixam as uvas na videira por tanto tempo como para os ice wines naturais. Estes ‘vinhos de gelo’ não tradicionais são muitas vezes referidos como os vinhos de ‘geleira’.
História ou estória
O ‘vinho do gelo’ terá surgido de forma acidental na Alemanha no final do século XVIII (entre 1774 e 1794). Conta a estória que o proprietário alemão de uma vinha esteve afastado da vinha em negócios e quando voltou a casa no tempo da colheita as uvas estavam congeladas na vinha. Mesmo assim ele apanhou-as e fez o processamento normal, dando origem ao que chamou o vinho de Inverno. Foi um acidente feliz.
O eiswein manteve-se durante muito tempo um segredo alemão, sendo consumido principalmente no país. Só na década de 1960 é que a produção se começou a espalhar por toda a Europa.
No Canadá, um imigrante alemão Walter Hainle terá produzido o primeiro ice wine também ‘sem querer’ e depois em 1984 a Inniskillin lançou o primeiro icewine com intenção comercial.
Variação dos níveis de açúcar face à temperatura
Temperatura | Teor de açúcar
-6°C 29%
-7°C 33%
-8°C 36%
-9°C 39%
-10°C 43%
-11°C 46%
-12°C 49%
-13°C 52%
-14°C 56%
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